Animes shonen e os terrores da classe trabalhadora

As vezes, o proletariado precisa de porradaria

Eu tive um blog sobre animes por anos. Fazia textos sobre os que tava assistindo, sobre temas relacionados ao que consumia e até cobria eventos de cultura pop japonesa em Feira de Santana. Acho que foi uma das coisas mais divertidas e importantes que já fiz, porque me aproximou muito de plataformas online de conteúdo, exercitei demais a escrita de artigos pra internet (o que virou meu ganha-pão por um tempo) e me fez consumir muita coisa legal.

Olhando retroativamente, sempre consumi mais animes shonen (pra um público adolescente), como a grande maioria das pessoas da minha geração (meio dos anos 90). Aí tu pode dar um tapa em pé de anime de porrada que provavelmente qualquer um que cair, já devo ter visto.

Mas algo que tenho percebido é que, cada vez mais, os ideais de heroísmo, aventura, superação e amizade que as grandes editoras japonesas de mangás — como a Shueisha sempre vendeu, por exemplo — vêm sendo substituídos por protagonistas trabalhadores. Alguns dos principais sucessos comerciais dos mangás recentes trazem relação com o trabalho.

Trabalhar é assustador. Em qualquer situação.

Kaiju nº 8 e classes de trabalhadores

Eu tinha uma boa expectativa com essa história por conta da repercussão positiva e tava esperando a animação pra começar a acompanhar. Existem uma série de coisas interessantes pra se pensar sobre Kaiju nº 8 (Naoya Matsumoto), mas falando sobre o assunto do nosso texto, é interessante pensar como o Kafka Hibino (referência óbvia) precisa aprender a lidar com o que causa pânico social para trabalhar, e precisa se transformar justamente em um monstro pra elevar a própria situação trabalhista.

A gente pode traçar um paralelo do Hibino, uma espécie de gari/açougueiro de kaijus com os burakumin, a casta social mais baixa do Japão. Eles representam cerca de 3% da população e, historicamente, sofrem preconceito e perseguição social por conta dos trabalhos que exercem. É um costume arraigado, muito ligado ao xintoísmo e o princípio de pureza, onde trabalhar com algumas profissões (como carrascos, açougueiros, varredores de rua) te deixaria impuro.

Se “lidar com o sujo” te torna sujo, então lidar com kaiju te torna um kaiju… certo? Aqui entra o “Kafka” da história: a partir do momento em que Hibino mostra aos seus colegas de trabalho seu segredo, ele passa a quebrar a ideia de monstro pré-estabelecida no imaginário coletivo da obra, ainda que ele também sinta medo de perder o controle, ferir um amigo, esse tipo de coisa.

No meio da pancadaria de personagens com roupas hi-tech saindo na mão contra monstros ultra-poderosos, existe um microcosmo de relações, sobre sociedade e trabalho que se pode interpretar, principalmente de como a classe trabalhadora também cria estruturas de classe dentro dela.

Mob Psycho 100 e jornadas de trabalho

Mob Psycho 100 (One) é um daqueles casos em que você demora pra acompanhar algo e se pergunta o porque demorou tanto. Uma das coisas mais legais que comecei a assistir esse ano, e muito por ser super bem escrito. No que diz respeito a essas relações de trabalho, é interessante notar como Mob (Shigeo Kageyama), mesmo jovem, acaba se submetendo a determinadas situações por manter uma postura passiva diante da figura do chefe (ou o mestre Rengen, no caso).

Sobre o patrão do Mob, existem pontos e contrapontos interessantes entre eles ao longo da história, mas quando Mob passa a questionar mais o porque de trabalhar tanto, se posicionar mais sobre abusos trabalhistas (como pedidos inadequados em momentos inoportunos) e passa a valorizar a própria rotina pessoal, é demitido.

Os debates sobre o fim da escala 6×1 ganharam mais espaço nos últimos meses, assim como a quantidade de layoffs (ou demissões em massa) em empresas de tecnologia, o que amplifica o exército de reserva; se demite em massa, abaixa o custo da recontratação e diminui o piso geral da categoria, retirando direitos dos trabalhadores e aumentando o lucro dos acionistas.

Esse é um cenário que coloca a classe trabalhadora numa sinuca de bico, uma vez que todos nós precisamos de dinheiro pra viver, ao mesmo tempo que temos medo em também querer mais do que dinheiro, ou não só trabalhar. O Mob, lendo dentro desse contexto, representa bem o receio que a classe trabalhadora tem em se impor, o que nos prende num limbo extremamente pessoal (uma vez que individualmente, todo mundo passa por coisas semelhantes), ao mesmo tempo que se desprender do que te prende parece impossível; tanto que Mob volta a trabalhar com Rengen.

Medo não é terror. Não é o que te faz gritar vendo uma jumpscare, mas o que te deixa impossibilitado de agir por conta própria. Talvez por isso estejamos trabalhando tanto, porque vivemos com medo de não saber o que fazer se não fizermos o que sempre fizemos. E assim, seguimos.

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