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Contos, TikTok e livros de verdade
Como em outras redes, algumas ideias são melhores se curtas.

Tudo tem se tornado mais curto. Vídeos de redes sociais, propagandas que duram seis segundos, tweets que somem do algoritmo se não "hitarem” em vinte minutos, músicas com menos de dois minutos feitas para entrarem nas playlists dos streamings, séries que duram menos de dez episódios. Nada disso por uma questão de qualidade pura e simples, mas de mercado: a repetição de pílulas de conteúdos, ideias, se provou mais lucrativo do que a perenidade. Seja na lâmpada incandescente ou no viral do TikTok.
Mas se tratando de literatura, é interessante como a História nos contempla com bons exemplos de histórias longas, curtas, grandes séries ou histórias únicas. É ponto pacífico afirmar que os contos dos Irmãos Grimm são tão importantes para a literatura ocidental quanto Dom Quixote, um épico. Ou que a produção literária dos contos de Edgard Allan Poe tem tanto valor quanto o universo complexo de Tolkien em Senhor dos Anéis. Cada um no seu quadrado, mas sem se anularem.
Porém, é interessante notar como numa época tão fulgaz quanto a nossa, algumas percepções viram validadores não de qualidade, mas de existência, sobre o que pode ou não ser arte, ou é ou não literatura. No fim do dia, contos são menos importantes do que romances literários?
O que muda do conto pro romance
Estruturalmente, contos e romances compartilham semelhanças, mas são objetivamente diferentes. Ambos precisam contar uma história e transmitir as intenções de quem o escreve de forma clara, com velocidades diferentes. Contos são mais diretos, contam com menos personagens, locações, enquanto romances possuem mais arcos dramáticos, o que exige mais trabalho pra deixar tudo mais conciso.
Rubem Fonseca e Agatha Christie, por exemplo, são grandes nomes do romance policial. Mas enquanto o primeiro tem histórias mais diretas, intensas, a segunda tem tramas com mais reviravoltas, onde os detalhes são importantes pro desfecho final. Não se pode esperar de Feliz ano novo o mesmo que se espera de Nêmesis, ainda que ambas sejam grandes histórias.
Tais diferenças fundamentais se dão pelo formato em que as histórias foram contadas, e não pela qualidade das ideias. Algumas coisas são melhores se contadas de forma mais curta do que outras. Como uma trend do TikTok que viraliza em vídeos com menos de um minuto, mas que não teriam a mesma performance se fosse aplicada num vídeo de trinta minutos no YouTube; do mesmo modo que A Sociedade do Anel não seria o que é se fosse um conto, ou Vovó, conto do Stephen King, não virou um romance literário.
"Contos são mais fáceis"
O fato de uma história ser mais curta pode dar a impressão a quem não trabalha com escrita literária que o conto é mais simples de escrever que um romance. Ou, que um autor que é contista não consegue, ou tem dificuldades em escrever narrativas mais longas. Ambas estão erradas, pra mim.
Sintetizar uma ideia em poucas palavras é tão difícil quanto explorar ao máximo uma. Pense em um anúncio publicitário, por exemplo: existem uma série de necessidades da marca, como vender o produto, competir com os concorrentes, gerar desejo de compra, e tudo isso precisa estar sintetizado numa única frase, que vai ser vista num ponto de ônibus. Ou, até um exemplo mais próximo: um tweet viral. O exercício de contração das ideias também acontece na literatura, seja enxugando parágrafos, reestruturando frases, removendo capítulos e arcos, ou, transformando algo que parecia ser muito maior em algo bem menor.
Sobre o segundo ponto: não existe nada que de fato justifique um contista não ser bom romancista. Machado de Assis, Lima Barreto, Shirley Jackson, H. P. Lovecraft, Robert Louis Stevenson, George R. R. Martin, Coelho Neto e tantos, tantos outros escritores famosos por romances também escreveram contos, que também são grandes histórias. Talvez se possa argumentar que o período contista de alguns desses nomes esteja localizado no início de carreira deles, fosse por uma exigência do mercado por mais romances desses nomes ou por pura escolha artística/literária deles, de forma prática e objetiva, contos e romances literários não são antônimos. Cada um deles possui dificuldades e particularidades, e cada autor trabalha com a própria obra como bem entender.
"Livro de verdade"
Não existe "mais livro" ou "menos livro". Uma história ocupar mais páginas que outra só a torna maior nesse quesito, quantidade de palavras. Você pode acreditar que uma obra maior consegue aprofundar mais em certas questões de personagem, worldbuilding, simbolismo e por aí vai, e até certo ponto, isso pode ser verdade. O que não quer dizer que histórias curtas também não possuam profundidade narrativa.
Uma ideia não precisa se adequar a um formato, mas encontrar qual atende melhor ao interesse de quem a apresenta. O importante na produção literária é deixar as intenções do autor claras com o que tá sendo escrito; se vai ser um conto, romance, crônica, quadrinho, pouco importa, desde que o formato faça sentido com o proposto.
A arte, em qualquer forma de expressão, não precisa de validador externo. Arte é arte, ponto. Picho não deixa de ser arte por não ser plástico como o graffiti, funk não deixa ser arte porque não se "parece" Chopin, conto não deixa de ser literatura por não ter páginas o suficiente para ser um romance. Clarice Lispector foi uma das maiores escritoras em língua brasileira e é reconhecida devidamente como tal também por seus contos, crônicas, entrevistas e escritos que não são estruturalmente romances literários.
Existe, sim, um tradicionalismo no mercado literário com relação a romances de estréia, e é comercialmente difícil publicar uma novela, ou apenas um conto, de forma impressa. Isso não impede, por exemplo, que autoras como Mariana Enriquez, ou Maria Fernanda Ampuero, que assinaram coletâneas como As coisas que perdemos no fogo e Rinha de Galo, respectivamente, de apresentarem narrativas curtas, potentes, com significado e que atraíram públicos interessados nesse formato. E duvido bastante que as editoras que publicam tais obras tenham qualquer dúvida do mérito literário e/ou comercial dos produtos em questão.
Mas se você me perguntar se acredito em livros de verdade e livros de mentira, minha resposta bem categórica é sim. Estamos cheios de livros de mentira por aí. Histórias que não transmitem nada, não emocionam em nada, não evocam memória, não debatem temas estruturais da nossa sociedade, que ocupam espaço em papel e na estante, mas não no subconsciente. Livros de mentira, que podem até alcançar certa notoriedade, ocupar algumas listas, levar pessoas a eventos interessados em ouvir o que os criadores tem a dizer (o que é curioso, pois nem eles mesmos sabem se expressar através do trabalho que fazem), mas que não sobrevivem ao teste máximo do tempo, e desaparecem. Como uma trend de TikTok.
Enquanto isso, Murilo Rubião segue como um dos principais nomes do realismo mágico brasileiro. Sua obra não chega a quarenta contos.
Validar a literatura pelo tamanho em palavras das histórias é o tipo de preocupação que donos de Jeep Renegade possuem, e se você possui um Jeep Renegade, provavelmente seus problemas com tamanho se estendem para coisas além da literatura, pura e simples.
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