De onde vem o medo do outro?

O que te faz ter medo de alguém e o que te faz olhar pra alguém?

2 de outubro de 1992 foi a data do Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram assassinados pelas forças de segurança do estado de São Paulo. Nessa época, meu pai trabalhava na empresa de pintura do meu tio. Eles foram contratados pra pintar centenas de celas depois do massacre. Aquela foi a única vez que meu pai entrou numa cadeia.

A cadeia é o lugar do outro, uma infinidade deles. Talvez por isso o medo de algum filho ir preso e se tornar não só mais um, mas outro. A gente vive com medo, assustado, confuso, ansioso, porque a realidade é assim, a lógica do capital faz da gente um bando de medrosos; e esse medo é direcionado no outro. Não é difícil imaginar quem é o outro, porque a métrica que estabelece o inimigo público é a mesma, e por isso que as cadeias estão sempre cheias dos mesmos “outros”.

Mas não acho que isso se resuma somente a raça. Também dá pra perceber na forma como as classes convergem: a elite até se dá bem com os mais pobres, desde que sejam só um pouco mais pobres que eles; pobre demais, é outra história. O abismo criado através do medo é cheio de pequenas inseguranças, como se, pra elite, o mínimo contato com a pobreza lhe tirasse algo vital, ou como se violasse a própria identidade.

Vivo em São Paulo desde 2019. Nesse meio tempo, tenho percebido como essa cidade transpira medo. E não digo em relação à segurança urbana, por exemplo; Feira de Santana teve 374 homicídios registrados em 2023, uma média de mais de um por dia — média essa que se estende ao longo dos últimos 10 anos —, enquanto São Paulo teve 481, a menor marca nos últimos 23. Se pensarmos que uma cidade com 5% da população da maior metrópole do país tem uma taxa de homicídios de 77,75% dessa metrópole, a bússola do medo deveria estar apontada pra outro lugar; e está, de certo modo.

Mas o medo que percebo em São Paulo é o da pobreza. É ele o responsável por transformar o Vale do Anhangabaú num mar de concreto em que não se pode se sentar numa árvore; por medo de atrair moradores de rua. O mesmo que faz o metrô emitir alertas para não oferecer esmolas nas estações, que instala pedras embaixo de viadutos, que isola os bairros ricos das linhas de transporte público — numa tentativa de que a pobreza se mantenha distante — e que faz com que dezenas de milhares morem em barracas ou nas ruas.

A figura do outro sempre vai guardar mistérios, porque é nele que vemos aquilo que nos falta, ou que nos assusta. O sentimento de saber que não existe completude em sociedade, sobretudo em sociedades em que a individualidade atinge esse patamar de glorificação, assusta. A própria ideia de monstro é o apontamento em outrem daquilo que repudiamos, em comportamento, ideia, tipo físico, impacto. Seja o lobisomem do Rei Licaão, os monstros cósmicos de H. P. Lovecraft ou no fenômeno do true crime, o receio é o mesmo.

A ideia do “outro” também pode ser lida como a ideia do alvo. Quando não estamos seguros o suficiente para assumirmos nossas próprias responsabilidades e lidar com as angústias que fazem parte da vida, o outro é responsável pelo desconforto que sentimos. Dentro do gênero de terror, podemos fazer uma leitura com os filmes de possessão, por exemplo, onde a descaracterização do eu se dá através de uma violação causada por outrem. Nesse sentido, talvez "O exorcismo de Emily Rose” faça um bom trabalho em deixar uma dúvida no expectador sobre esse tópico.

Todo medo outro é fundamentado no preconceito? Talvez não. Difícil excluir o caráter personalista ou a falta de informação do julgamento, nesse caso. Ao mesmo tempo que é difícil não ver nessa ideia as bases da construção do pensamento racista, que reproduz até hoje as ideias de Carl von Linné (o “pai da taxonomia”, responsável pela classificação dos seres vivos), quando no século XVII não só “classificou” os humanos em raças atribuindo-os características morais como traços genéticos:

  • Brancos: branco, sangüíneo, musculoso, engenhoso, inventivo, governado pelas leis, usa roupas apertadas;

  • Americanos: moreno, colérico, cabeçudo, amante da liberdade, governado pelo hábito, tem corpo pintado;

  • Asiáticos: amarelo, melancólico, governado pela opinião e pelos preconceitos, usa roupas largas;

  • Africanos: negro, flegmático, astucioso, preguiçoso, negligente, governado pela vontade de seus chefes (despotismo), unta o corpo com óleo ou gordura, sua mulher tem vulva pendente e quando amamenta seus seios se tornam moles e alongados.

Você pode entender mais sobre a construção do pensamento étnico-racial de Carl Von Linné através do artigo Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia, do antropólogo brasileiro-congolês Dr. Kabengele Munanga, que você pode acessar aqui.

Quando o discurso científico é usado como base pra reafirmar características que não concordamos no outro, o senso comum absorve essa ideia e traduz em preconceito e medo. Nesse sentido, a ideia do medo do outro pode até não ser de exclusividade da construção do pensamento racista, mas passa por ele. Talvez, devêssemos ter um pouco mais de medo de nós mesmos. Mas isso é papo pra outro texto.

Domingo, dia 13 de outubro, vou estar participando da mesa Estrutura e forma: os textos de Lucas Paraizo (roteirista das séries Os Outros, Sob Pressão e da primeira temporada de Justiça (todas no Globoplay), além de escrever a regravação da novela O Rebu e assinar o roteiro de filmes como Aos teus olhos), no Festival do Clube de Criação — que acontece no Memorial da América Latina, em São Paulo —, junto com Andrea Siqueira e Romero Cavalcanti. Infelizmente o evento é fechado e os ingressos estão esgotados, mas será possível assistir a mesa através dos aparelhos de Box TV. Claro, também vou postar o melhor da mesa nas redes sociais.

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