Fantasmas sociais e o terror como tática do 'anti-medo'

Como esquerda e direita exploraram os medos do povo nas eleições de São Paulo.

Mais um período eleitoral passou. Laudos toxicológicos falsos, governador acusando facção criminosa de orientar voto em adversário político, criminosos sendo reeleitos depois de alagarem uma capital inteira e chuva de fake news em grupos e redes sociais. Nada de novo sob o sol.

Não é novidade que eleições em democracias burguesas não são sobre projetos políticos. Dinheiro, lobby, negociatas, tudo influencia no resultado final de uma eleição. Mas não somente; se fosse o caso, Boulos não teria conquistado 0,03% a mais de votos em 2024 em relação a 2020, mesmo com um orçamento de campanha onze vezes maior. Existe algo sendo trabalhado dentro do espectro liberal nos últimos anos como parte do “trabalho de base” que a direita encontrou nos últimos anos: o terror.

Separação indivíduo-sociedade

Vivo em São Paulo desde 2019. Talvez pra quem não esteja na cidade seja difícil imaginar como um sujeito como Pablo Marçal chegou com tanta força na primeira eleição para prefeito. Mas vendo daqui, não parece tão distante, assim. A ideia liberal do mérito individual, do progresso e de que a riqueza te afasta dos problemas sociais faz parte do discurso financeiro que percorre a maioria dos departamentos de grandes empresas na capital.

São Paulo não é mais uma cidade industrial como no início do século XX, onde os movimentos sindicais tiveram um grande papel na composição urbana. Vivemos numa era de serviços e tecnologia, que cria uma impressão de tangibilidade ao sucesso. A partir do momento em que esse pensamento ganha lastro, a capacidade de se ver em sociedade dá espaço ao individualismo, que sempre soará mais urgente. A vontade do hoje, a fome da noite, a passagem de amanhã.

Quando olhamos para a origem dos votos no primeiro turno em São Paulo, vemos Boulos destacado nos extremos das zonas norte, leste e oeste (lugares com organizações populares historicamente ligadas ao PT), mas também uma base de Nunes em regiões de classe alta (Moema, Morumbi, Brooklin, por exemplo). Marçal se destacou pelos votos da "nova classe média" paulistana, concentrada na zona leste nas últimas décadas, impulsionada pela especulação imobiliária que redesenhou a urbanização da cidade e fez alguns bairros que valiam muito menos, valerem muito mais.

Nenhum dos candidatos teve ampla maioria, mas esse mapa de influência ajuda a entender como as lutas de classes se estabelecem na maior cidade do país.

Essa nova classe-média não ascendeu do dia pra noite, muito menos com base em grandes conchavos individuais. Aqui, falamos de processos sócio-históricos que criaram uma pequena mobilidade social: redistribuição de renda, acesso ao ensino superior facilitado, facilidade em financiamento de casas e apartamentos, momentos de incentivo à linha branca (dando muito destaque ao setor de montadoras de carros) e por aí vai.

Essa galera não é a elite. Pode ser o chefe de alguém, o dono de algum mercado de bairro, ou de uma loja, ou alguém que ganhe um bom salário numa multinacional, mas definitivamente não é (e está muito longe de ser), elite. O terror de perder direitos conquistados nos faz olhar com alarmismo pra tudo. Por isso a ideia de que o Boulos é invasor de apartamento e que vai confiscar bens das pessoas é tão forte em São Paulo. Ou que o comunismo vai destruir tudo, que as pessoas vão ficar mais pobres, e que vamos “virar a Venezuela” e por aí vai.

Esse não é o tipo de pensamento que se esvai em meses de campanha eleitoral, porque o trabalho de base da direita é feito constantemente: nas igrejas que pregam a teologia da prosperidade, nos influenciadores que prometem ganhos milionários com fórmulas mágicas e idealismo, no privatismo que sucateia serviços públicos pra gerar lucro a grandes corporações e desviar recursos públicos, nas soluções de segurança pública que visam a proteção do indivíduo e propriedade privada e por aí vai.

Para a nova classe-média, o terror maior é voltar a ser aquilo que já se foi um dia. É nessa fagulha que nomes como Pablo Marçal e Bolsonaro se agarram para vender um projeto político a uma população que não está interessada em saber se aquilo é coletivamente bom, mas que seja individualmente bom.

Pobre de direita e anti-medo

Do outro lado, temos a "esquerda tradicional", cada vez mais alinhada ao centro e mais medrosa em se assumir como esquerda. Em dez anos, Boulos deixou de falar de socialismo em debates pra impulsionar memes com trocadilhos com bolos.

Durante o pleito pra prefeitura de São Paulo, era claro o medo do candidato do PSOL em esquivar de temas polêmicos; no Roda Viva, Boulos foi encurralado pelas perguntas sobre a Venezuela (que em nada influencia no dia-a-dia paulistano, mas faz parte do grupo de “assuntos complicados” pra centro-esquerda brasileira), passou a campanha inteira sem citar a própria militância de anos no MTST (inclusive proibindo atos e almoços coletivos em São Paulo durante o processo eleitoral), não pode fazer nenhuma crítica contundente ao caso da Enel e das quedas de energia em São Paulo, já que a concessão é federal, logo, atingiria também o Lula).

Nesse sentido, toda a campanha do Boulos foi construída na ideia do anti-medo: uma vã tentativa em mostrar que Boulos não é invasor de propriedade, usuário de cocaína, associado com facções criminosas e todo um esforço hercúleo em desmentir claras mentiras, mas nunca com um discurso duro, posicionado, nunca falando grosso. Boulos passou a maior parte do primeiro turno tentando correlacionar Marçal, Nunes e Bolsonaro, enquanto os opositores angariavam muito mais votos partindo pra cima dele enquanto indivíduo.

Foi justamente o medo em ser esquerda que fez a base de eleitores de Boulos se manter a mesma: em 2020, o candidato teve 40,62% dos votos válidos no segundo turno contra 40,65% em 2024. A esquerda não tem capacidade de diálogo fora dela, não apresenta um projeto político atraente, não tem construídos as próprias lideranças e devolve para a base da pirâmide parte do ódio que recebe do topo: a própria ideia de "pobre de direita".

É vivo na esquerda o sentimento de superioridade intelectual quando as ideias não tão em conformidade. Não falo sobre linguagem academicista ou coisas do tipo “a nova esquerda brasileira foca em pautas identitárias e não em realidade material” (na verdade, existe todo um debate sobre como nossos movimentos de esquerda têm se tornado cada vez mais estadunidenses), mas assumir que o “pobre de direita” é burro por ser de direita, quando ela mesma não se dá ao trabalho de olhar pra nova classe-média com o mesmo potencial de votos que a direita vê, não quer e não tem feito trabalho de base sólido com lideranças locais, sindicalistas, movimentos estudantes e culturais.

As duas maiores produtoras de funk do Brasil declararam apoio a Pablo Marçal no primeiro turno e a Nunes no segundo. O emidebista ganhou em 54 das 57 zonas eleitorais do segundo turno, isso inclui também os bairros que Boulos venceu no primeiro turno.

Entre patrões e pastores criando pânico no brasileiro médio desinformado com o fantasma do comunismo e o medo de virar Cuba à direita, e uma esquerda que passa álcool em gel na mão depois de apertar a mão de um trabalhador, seguimos frágeis e bambos tomando no centro, com congresso e tudo.

Ficou com medo das últimas eleições? Calma que 2026 tá vindo aí (o que não vai ajudar muita coisa, pelo visto). Mas o que fazer até votar pra presidente de novo?

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