Hypnofrenose, parte 1

ou "a história sem parte 2"

Eu lembro que tinha uns 16, 17 anos, quando comecei a escrever minha primeira história de ficção. Nessa época, lia muito Percy Jackson e os Olimpianos. Eu trabalhava (ou “filava aula”) na biblioteca da escola em que estudava. Percy Jackson não foi meu primeiro livro infantojuvenil, mas gostei bastante da experiência (até o quarto livro, não li o restante da saga) e isso me inspirou a criar uma fanfic chamada As aventuras de Joel Fandangos no Monte Olimpo.

O nome é horrível.

Não tenho mais os arquivos dessa história, mas se tratava de um garoto que tinha uma condição em que, se ficasse 18 horas ou mais acordado, uma segunda personalidade assumia o corpo dele. Essa personalidade se chamava Joel Fandangos. Numa viagem da escola pra Atenas (?), o protagonista fica esse tempo acordado direto e Joel Fandangos, que era um “investigador paranormal” passa a procurar/// pistas de um suposto caso envolvendo mitologia grega e Percy Jackson (??).

Confesso que, à época, era divertido escrever essa história. Escrever é pra ser divertido, no fim das contas. Hoje acredito que não a faria. Mas por ser algo tão peculiar, acabou me marcando e esse insight de mudança de personalidade continuou me acompanhando por muito tempo.

Gosto de trabalhar com dualidades. Essas relações de yin e yang, bem e mal, dia e noite, acordado e dormindo, enfim, trazem um espectro cinza interessante pra ser abordado em narrativas de terror. Pra mim, que vejo essa relação do suspense e do medo muito mais no campo psicológico do que sobrenatural, é um prato cheio.

Por isso, quando pensei em fazer a coletânea Estado Hipnogógico, busquei pontos de partida que dessem substância não somente pra contos psicodélicos, mas que proporcionassem espaço de discussão dentro da narrativa (e fora dela) sobre os espectros do medo e do ser. E, nos exercícios de composição dos contos, trouxe parte da ideia do Joel Fandangos pro conto Hypnofrenose, parte 1.

Eu tenho problemas para dormir e isso já foi explorado em alguns outros trabalhos, mas nunca fui sonâmbulo. Acho deveras curioso, aliás, a capacidade de estar acordado quando estamos dormindo. A hipnofrenose é uma característica que pode ser perigosa, mas que justamente por ser tão atrativa, foi a que escolhi pra compor parte da ideia pro conto.

A primeira ideia pra narrativa começava dentro de um bordel, onde o protagonista “acordava” sem saber onde estava e o quê acontecia, até que uma gangue de ursinhos de pelúcia armados até os dentes invadia o prostíbulo. Nessa proposta, o protagonista intercalava momentos de apagão com exploração da psique através da terapia. Senti que faltava substância na narrativa e abandonei essa ideia.

Na segunda, o conto seria dividido em dois momentos: um em que veríamos o protagonista estando em uma determinada situação; a outra, outro personagem, vivendo outra vida. Em dado momento, seria relevado que os dois eram um só e que um era “o outro” sonâmbulo. Achei um tanto quanto manjado e também abandonei essa proposta.

Mas o que eu sentia falta, de verdade, era da exploração da dualidade. Algo que pudesse ir além do padrão “dormindo ou não” que a proposta do sonambulismo traz. Resolvi trazer um outro debate junto à narrativa: a bissexualidade.

Passei a maior parte da minha vida numa cultura homofóbica e heteronormativa. Em casa, na escola, na quebrada. Não existia a ideia de bissexualidade: ou você era “homem” ou “viado”. O “gilete”, aquele que “corta pros dois lados”, era usado em contextos homofóbicos. Ir contra os estereótipos de gênero e sexualidade num contexto de ultra violência urbana também com a comunidade LGBTQIAP+ é perigoso. Sabendo disso, passei grande parte da minha trajetória pessoal buscando me adequar nesse sentido.

O processo de redescobrimento da minha própria sexualidade durou vários anos e passou por várias fases diferentes até de fato me entender como um homem cis bissexual. Quando percebi isso, me vi numa posição de dualidade, entre a cultura heteronormativa que estive condicionado x um novo entendimento do eu, cheio de aprendizados, que queria explorar. Uma relação que, pra mim, se assemelha muito ao sonambulismo: estar ou não acordado, sem saber o que é o quê e como um afeta o outro.

Na terceira ideia, resolvi olhar muito mais para a situação bilateral do protagonista, Ramon, em suas relações com relação ao sonambulismo, mas também sobre a própria sexualidade dele, e trabalhar isso num paralelo dele com ele mesmo, mas em outra perspectiva, algo como “como seria se não tivesse acordado para mim mesmo?”. Um ponto interessante é a questão da religiosidade no meio desse processo, uma vez que muito do conflito que Ramon enfrenta vem de uma cultura estabelecida pelo cristianismo e seus mecanismos de repressão individual (ou pecado).

A partir disso, construi a narrativa buscando um estilo que ainda estivesse adequado à proposta estética dos demais, mantendo a psicodelia e o apelo visual, mas sem tanto uso de gore ou artifícios do horror, mantendo os paralelos do Ramon com ele mesmo em diversas situações (acho que é o máximo que consigo explicar sem dar spoilers da trama).

Quanto ao nome: “Hypnofrenose” tem uma escrita interessante e sonoramente parece bem atrativo. Noctambulismo também é um dos outros nomes para o sonambulismo, mas soava menor em questões estéticas. Já a “parte 1” vem de uma ideia que esse processo de despertar pessoal do personagem deu início, mas não é algo com fim tão definido. Ter ou não um “Hypnofrenose, parte 2” não muda nada: ainda acontece. Portanto, nem na coletânea, nem em outra oportunidade (porque não sei o quanto ou se voltarei a esse universo), isso vai acontecer.

No momento que escrevo essa newsletter, o conto está sendo editado. E bem, ainda tem bastante trabalho a ser feito. Mas quis compartilhar como algumas ideias aconteceram e abrir esse debate sobre os processos de criação. Ainda tenho que fazer sobre os outros, também.

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