Raça, terror e medo do espaço.

Karine Ribeiro conta sobre seu processo de escrita, rotina como tradutora e novos projetos.

Conhecimento, entre muitas outras coisas, se faz a partir da análise, debate e compreensão de várias visões diferentes. Por isso não fazia o menor sentido passar o tempo inteiro falando sobre terror, suspense e outras coisas numa newsletter sozinho.

As entrevistas servem justamente para assentar novas ideias e possibilidades em mim e nos leitores da Terror com dendê.

Nada melhor do que começar esse papo trazendo uma mulher negra e mineira como Karine Ribeiro para abrir esse novo momento. Uma entrevista de cerca de 1 hora que você confere na íntegra abaixo.

Terror com dendê: Bem, pra começar, se apresenta pra galera da newsletter. Fale um pouco sobre você, o que você achar mais legal pro pessoal te conhecer.

Bem, eu sou Karine Ribeiro, sou de Minas Gerais e apaixonada por livros desde pequenininha. Eu sempre pensei em trabalhar com livros desde muito nova, mesmo que ainda não soubesse que seria tradutora. Hoje em dia já trabalhei traduzindo para grande parte das editoras do Brasil.

Quando era pequena já me arriscava a escrever. Sempre fui muito estimulada à leitura, pelos meus pais e na escola. Em casa comecei com os quadrinhos da Turma da Mônica, eu amava os gibis. Depois, em sala de aula, esse estímulo continuou. Lembro de uma atividade, tinha menos de dez anos, em que uma professora fez uma brincadeira: fulano almoçou frango e foi dormir, com o que ele sonhou.

TD: E o que você respondeu?

Um frango assassino!

TD: Chicken, o frango assassino!

A professora elogiou bastante e disse que eu tinha futuro. Depois disso resolvi investir de vez na escrita e comecei a escrever já aos treze anos.

TD: Nossa, você começou bem nova. O Secretária vem dessa época?

Karine: Sim, escrevi Secretária do Diabo com 17 anos.

TD: Conta mais um pouco sobre como você chegou na ideia já essa idade.

Sempre escrevi coisas fora da curva, mas ainda me segurava muito. Chegou um dia que resolvi fazer algo sem limites. Eu nunca planejo nada, só vou escrevendo. Nem título essa história tinha, na época.

TD: De onde veio o nome?

De uma música da banda Angelspit, uma banda de metal industrial alternativo. Tem um trecho em que diz “eu sou a secretária de Satã”, achei um bom nome pro livro. Pra mim o título é uma parte muito importante, é a conexão entre o que tá passando pela minha mente e o papel.

TD: A ideia de fazer um livro com uma metalinguagem que coloca uma história dentro da outra nasceu naturalmente, então?

Mais ou menos por aí. Lembro que em 2014 teve a Bienal do Livro aqui em BH. Eu fui e enfrentei uma fila enorme pra falar com um autor famoso, que hoje em dia está na Netflix e tudo.

TD: Já sabemos quem é.

Exatamente! Na fila, pensei numa cena do protagonista, Alexandre, pra encontrar o autor preferido dele, Gabriel Salinas. Cheguei em casa e escrevi um prólogo, que descartei. Eu sempre escrevo prólogos que depois descarto. Depois disso entrei de férias e tive tempo pra escrever, levei dois meses para finalizar o Secretária.

A metalinguagem não foi planejada, também. À medida que fui escrevendo, percebi a necessidade de contar a história da Amanda. Não fazia sentido Alexandre seguir os passos dela e não vermos o ponto de vista dela. Então fui retornando e adicionando cenas da Amanda entre os capítulos do Alexandre, o que deu essa estrutura metalinguística.

TD: Foi um exercício difícil?

Foi onde tive mais dificuldade. As cenas da Amanda foram bem mais desafiadoras, mas estava ali para me divertir, então foi um processo interessante.

TD: Secretária de Satã é seu primeiro romance e foi o primeiro a ser publicado pela Rocket Editorial. Como foi o sentimento dessa estreia dupla?

A única pessoa que tinha lido Secretária de Satã antes da publicação foi a Valquíria Vlad, minha amiga e parceira na Wish. Ela me disse “esse tem que ser seu primeiro livro”, mas era algo que eu tinha escrito aos 17 anos e nunca tinha retornado. Eu também achava que devia ser meu romance de estreia, mas não queria publicar independente, queria que passasse por uma edição pra ter o melhor trabalho possível.

Até que a Cláudia Lemes, que já queria abrir a Rocket, conversando com a Valquíria, ficou sabendo do Secretária de Satã. Foi então que a Cláudia me procurou e eu enviei o livro pra ela. No dia seguinte ela me fez a proposta de publicação.

TD: O Secretária tem uma capa bem icônica, que remete muito às revistas pulp. Foi uma ideia sua? Você já tinha essa ideia do visual em mente?

Eu não tinha nada em mente com relação ao visual. A ideia veio da Cláudia, que disse que a gente precisava atingir um público mais velho. Ela já me mostrou o projeto pronto com todos os elementos da história, inclusive o Gabriel Salinas, que só aparece bem no finalzinho do livro.

TD: Agora falando do seu trabalho como tradutora, você já fez algumas traduções pra Wish, que faz uma série de publicações de clássicos e obras em domínio público. Você se espelha mais nos clássicos pra montar suas referências de escrita? Mescla com o contemporâneo? Como funciona seu referencial.

Eu gosto de mesclar os dois. Estou sempre traduzindo para editoras diferentes, então eu leio o tempo inteiro. Preciso ter referências de vários estilos e momentos. Gosto de lidar com textos antigos e com o resgate dessas obras.

TD: Esse processo de tradução, inclusive, é bem mais complexo do que visto de fora. Isso de interpretar contextos culturais de outros lugares, em idiomas diferentes, parece bem desafiador.

O tempo todo. Eu costumo dizer que a rotina do tradutor é bem trabalhosa nesse sentido. O idioma, a questão cultural, tudo influencia em como localizar a obra. Escrever e traduzir são processos diferentes. A gente se depara com desafios constantemente. Quando é algo mais específico de um país que tenho mais conhecimento da cultura local, como os Estados Unidos, é mais fácil pra mim. Já quando é algo britânico ou australiano já dou uma penada.

TD: Qual o projeto mais desafiador como tradutora que você teve até então?

Bolo preto, da Charmaine Wilkerson, publicado pela Paralela aqui no Brasil. O livro é todo escrito num tipo de inglês crioulo que mistura jamaicano com chinês, algo que é bem próprio da cultura caribenha. O livro inteiro gira sobre a cultura do bolo preto, então tive que ler diversas obras jamaicanas pra entender o contexto cultural.

TD: Você já traduziu diversas obras e faz muitas traduções de autores negros. A gente sabe como tudo o que pessoas negras fazem já é, por si só, racializado. Você já se sentiu travada em trazer suas experiências como mulher negra para seu trabalho?

Zero freios com racialidade. Ao longo do tempo eu percebi que sempre que é um projeto de uma pessoa preta, as editoras buscam uma equipe preta. E confesso que traduzir essas obras foi o que me abriu espaço no mercado. Mas eu me pergunto se não fosse essa demanda por representatividade se eu teria espaço para trabalhar como tradutora.

Outro ponto que percebi em minha experiência é que, quando é uma pessoa negra à frente do projeto, ou em um cargo de liderança numa editora, existe uma tendência de que ela me passe projetos além da raça. Só que quando é uma pessoa branca, é sempre mais voltado para a temática racial.

TD: No terror a representação dos personagens pretos ainda é muito estereotipada. É sempre o personagem negro que morre no início ou o amigo do personagem branco. Mesmo com diretores como o Jordan Peele, que trazem um trabalho diferente nesse sentido, ainda é uma questão, como no caso do filme X, em que o personagem negro é completamente estereotipado. Você considera essa questão quando desenvolve seus projetos?

Hoje em dia, com certeza. Em todas as etapas. Ainda existem personagens negros que não se parecem com pessoas negras, que só estão ali para cumprir uma cota. Confesso que quando escrevi Secretária de Satã não tinha essa leitura, tanto que o livro não tem personagens negros e essa foi uma decisão que mantive depois da edição. Eu não queria uma faceta de violência extrema a um homem negro, acho sem necessidade. Hoje em dia procuro focar em obras protagonizadas por pessoas negras e falar o que causa medo nelas.

TD: Pode falar mais sobre isso?

A questão do cabelo e da aceitação, por exemplo.

TD: Também já passei bastante por isso.

Eu li um livro de terror uma vez com uma protagonista negra que se passa por uma pessoa branca, porque ela tem uma pele mais clara, mas o cabelo dela é o que a atrapalha, mas ao mesmo tempo a define. É uma temática que também gostaria de trazer, porque a falta de aceitação me assusta.

TD: Você, inclusive, vai publicar agora pela Harper Collins.

Sim, esse é um texto super importante e que queria falar mais sobre ele. Eu tava precisando me reencontrar como escritora, sentia que minha voz estava sumindo aos poucos. Passei por um momento muito bloqueada e só trabalhando em outros textos. Quando a gente começou a planejar o que seria o livro eu fiquei calada o tempo todo, porque não sabia o que fazer.

Foi então que a gente decidiu falar sobre as várias gerações de pessoas que viveram em uma casa, acompanhando os personagens de várias gerações. A minha personagem é a única forasteira. Uma mulher negra, autora best seller, que não se sente suficiente como escritora nem como pessoa. Ela encontra a casa num Airbnb da vida e decide passar um tempo lá, tentando esse reencontro pessoal.

Esse texto, aliás, é muito pessoal. É como se tivesse escrito minha alma, ali. Acho que com Secretária não foi tão próximo quanto esse.

TD: Já tem previsão de lançamento?

Por enquanto não, talvez saia esse ano na Bienal do Rio.

TD: É um romance coletivo?

Podemos dizer que sim.

TD: Como vocês se planejaram pra deixar tudo mais ou menos alinhado?

Olha, a gente não pensou muito nos detalhes, mas chegamos nas mesmas definições sozinhas. Descrevemos a casa do mesmo jeito, colocamos o portão no mesmo lugar, mostramos os cômodos todas de uma forma bem parecida. Os contos formam um romance. Você pode ler cada um em uma ordem, mas no final colocamos uma ordem de sugestão que achamos interessante.

TD: Você tem trabalhado em coisas novas?

Eu tenho um projeto pronto, esse posso falar porque ainda não tem nenhum contrato com ele. Resolvi escrever sobre um lugar novo, uma cidadezinha pequena no interior de Minas Gerais. Um lugar que enfrenta problemas com uma empresa de mineração. A prefeita dessa cidade teve a vida destruída por essa empresa e quer vingança, quer tirar a empresa dali. Ela encontra um jornalista investigativo e faz uma parceria com ele. Os dois não se conhecem pessoalmente e resolvem se encontrar num ônibus que iria para a capital.

Acontece que um assassino mata o jornalista e entra nesse ônibus se passando pelo jornalista. E ali temos várias histórias: a da prefeita, um senhor idoso, um casal, uma estudante e do assassino, também. Num determinado momento um clarão forte aparece e todo mundo apaga. O motorista do ônibus sumiu, a cidade muda, as ruas mudam de lugar. E a cada vez que esse clarão aparece de novo, uma pessoa desaparece.

Também é um livro bem pessoal, eu moro do lado de uma área de mineração. É um livro que faz muitas referências a minha infância, também. O número do ônibus é o mesmo que pegava pra faculdade.

TD: Você trouxe rituais e muito gore no Secretária e traz uma pegada sobrenatural nesse novo projeto. Tem algum gênero do terror que você curta mais?

Eu gosto muito do gore, por isso trouxe bastante dele no meu primeiro livro. Não me atraio tanto por body horror, principalmente nos filmes. Acho que na literatura funciona muito bem, mas graficamente me incomoda. Não consigo assistir filmes como Jogos Mortais, por exemplo. Também não gosto de escrever sobre espíritos e fantasmas, tenho medo dessas coisas, ainda que seja a temática do meu trabalho com a Harper. Eu tenho medo de escrever de noite, só escrevo de manhã.

Acho que algumas coisas, como a violência gratuita, funcionam a depender da situação. Eu adoro filmes como Psicopata americano e Assassinos por natureza que trazem essa ultraviolência num contexto mais de suspense. Mas quando isso vem pro terror, me incomoda.

TD: Você já disse ter medo de escrever à noite e de fantasmas, tem mais algo que te assombra?

Invasão de propriedade me assusta muito. Não saber se tem alguém escondido no meu apartamento, também, nem gosto de imaginar. Das coisas mais comuns eu tenho medo de altura. Inclusive, saiu um filme em que duas mulheres vão escalar uma torre, com certeza não vou assistir esse filme. Também tenho pavor de cobra e medo do espaço.

TD: Do espaço?

Sim, tudo relacionado ao espaço.

TD: Então você tem medo de space opera?

Acho que o que me dá medo é a magnitude das coisas. Saber que somos só uma coisinha no meio da imensidão. Gosto de estar dentro de algo, me sento protegida assim. Até documentários sobre isso me deixam com medo.

TD: Acho que esse papo foi fundamental pra gente conhecer mais de você e do seu trabalho. Você pode usar esse espaço pra deixar suas redes sociais, falar onde as pessoas podem encontrar suas obras e por aí vai.

Meu perfil é @karineescreve em todas as redes sociais, inclusive no Tiktok, onde eu falo sobre tradução e literatura. Secretária de Satã vocês podem encontrar o físico no site da Rocket e o ebook na Amazon. Também tem o vem aí pela Harper que deve sair por volta da Bienal do Rio.

E alguns livros que traduzi e gostaria de recomendar: Em busca de mim, da Viola Davis, que foi uma grande honra pra mim, é um livro muito impactante. Também queria recomendar "Os reinos perdidos", da N. K. Jemisin. Traduzi os dois últimos da Trilogia do legado. Por fim, Terror depois da ceia, da Wish, que traz um clima bem de histórias de terror em volta de uma fogueira, com cada um contando sua história.

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