O moto perpétuo do terror

ou "a fórmula mágica do gênero".

Recentemente voltei a assistir Succession na HBO Max. Eu tinha começado a série, visto quatro episódios e… parei. Sem motivos. Achava massa, todo mundo falava bem, mas o sentimento de “daqui a pouco eu volto” foi se tornando maior.

Então voltei a assistir e estou adorando. Mas a sensação de “já vi isso antes” é muito forte.

De fato, procurar histórias de pais que precisam passar um império para algum dos filhos desajustados antes de morrer não é novidade no cinema ou literatura. O Poderoso Chefão é prova disso. A pergunta é: por que?

Em 2019, a extinta redação do El País no Brasil publicou um texto excelente sobre as seis histórias contadas por Hollywood a mais de 100 anos. Você pode ler mais sobre isso aqui, mas à título de debate, elas são:

  1. Histórias de Ícaro: histórias de superação, alguém que cresceu muito, fez merda e precisou voltar tudo de novo.

  2. Histórias de Orfeu: personagens que atravessam um verdadeiro inferno em suas vidas.

  3. Histórias de Cinderela: personagens que ascendem de classe e/ou status rapidamente e se vêem numa realidade social completamente diferente.

  4. Viagens iniciáticas (ou a forja do herói): histórias onde o amadurecimento é o ponto chave, como The Last of Us, por exemplo.

  5. O objeto mágico (ou a busca do herói): esse é bem auto explicativo, mas a grande maioria das histórias de assalto estão aqui.

  6. Rapaz conhece moça (ou ‘sujeito’ mágico): o bom e velho romance onde um descobre o amor na outra pessoa (às vezes não de forma saudável.

Importante ressaltar que esses tópicos não são sobre estrutura ou gênero/subgênero, mas sobre temática. Você pode encontrar filmes de guerra que se relacionam com o objeto mágico (O Resgate do Soldado Ryan, onde o objeto mágico é o Ryan), ficções científicas dentro do espectro da Cinderela (como Jogos Vorazes) e por aí vai. Claro, esses motes separados pelo El País não são os únicos, tanto que é mais fácil criar um novo para encaixar O Poderoso Chefão e Succession do que tentar em um desses seis.

Mas e quando falamos de terror? Bem, o gênero tem, sim, alguns plots clássicos. E (acho que) consigo listar alguns*:

  1. Histórias de Emily: basicamente são as histórias de pessoas e espíritos interagindo, como O Exorcista, O Exorcismo de Emily Rose, Possessão e por aí vai;

  2. Histórias de Amityville: filmes, séries, livros e quadrinhos que exploram uma casa abandonada, como A Maldição da Residência Hill ou Horror na Colina de Darrington, por exemplo;

  3. Histórias de Frankenstein: onde a presença de um monstro faz o papel de antagonista e/ou principal conflito (aqui os exemplos são diversos, de Drácula à O médico e o monstro);

  4. Lovecraftanismo**: tudo o que parte ou deriva das ideias de horror cósmico proposta por Lovecraft;

  5. Objeto amaldiçoado: artefato carregado de simbolismo e/ou ocultismo e que vai ser o centro da narrativa (acho que Chucky e O chamado servem como bons exemplos aqui);

  6. Slasher: assassino em sequência faz uma série de vítimas, algumas com motivo aparente, outras, não (que vamos discorrer mais a seguir).

*Essa é uma lista de percepções pessoais, obviamente que cabe discussão (inclusive ela foi pensada muito mais pra ser um paralelo da matéria do El País do que como um estudo, de fato).

**Lovecraftanismo é um neologismo para me referir mais ao abstracionismo do horror cósmico (medos initeligíveis e indiscritíveis que nos levam a insanidade) do que da aplicação lovecraftana (que é carregada de preconceitos por parte do Lovecraft e que compõem o imaginário do público leitor).

Essa percepção de similaridades em tramas me lembra um outro conceito: o moto perpétuo. Na música, esse termo se refere a um fragmento da música com notas fixas repetidas infinitamente num intervalo curto de tempo, dando a ideia de infinidade. A música Black Lake, da cantora Björk, traz um pouco disso, inclusive.

O moto perpétuo é bem parecido com a indústria do cinema. Até do terror.

Pro terror, acredito que o que mais se aproxima disso são os slashers.

Outro dia estava vendo o trailer da versão dark do Ursinho Pooh, Winne Pooh: Blood and Honey, que saiu esse ano. Eu ainda não vi o filme, mas já li bastante a respeito e vi que: a) a crítica especializada odiou, mesmo arrecadando absurdos em comparação com o orçamento minúsculo (U$ 15 mil); b) já confirmaram sequência; c) o estúdio quer adaptar mais histórias infantis (inclusive, Teletubbies).

O ciclo do sucesso na indústria pop.

É literalmente um filme sobre o Ursinho Pooh ser um assassino sanguinário de 2 metros de altura, 140 kgs de puro ódio, com uma máscara de R$ 5,99 de loja de artigos infantis que mata pessoas indiscriminadamente numa floresta porque o Christopher virou adulto e resolveu abandonar os amigos de infância.

O slasher causa reação em cadeia. É fácil de se produzir, atrai olhares, proporciona boas jumpscares, não precisa de muita grana e oferece possibilidades de desenvolvimento de histórias mais sucintas.

Entre o primeiro Sexta-feira 13 e o oitavo título (Sexta-feira 13: Jason ataca em Nova York), temos um intervalo de 9 anos. À efeito de comparação, entre o primeiro e o décimo Velozes e Furiosos, são 22 anos de diferença. O que mostra que, mesmo com baixo orçamento, filmes slasher possuem tanto ou mais poder de impacto na indústria do entretenimento quanto Vin Diesel e companhia.

Os motivos pra isso são vários e cabe uma análise mais profunda do espectro do medo dentro do tópico/arquétipo slasher em outra newsletter. Mas, se tratando deste texto, percebem como o slasher traz uma característica semelhante ao moto perpétuo?

Não existe um “guia definitivo” de como produzir histórias. Estética, formato, proposta, fluidez, tudo precisa estar adequado com a ideia. Mas o que se tem se apresentado desde o primeiro Massacre da Serra Elétrica até contos como Essa festa virou um slasher (Marina Feijoó), que une todos os elementos clássicos do gênero com uma proposta política e social voltada para a comunidade LGBTQIA+ é a adaptabilidade do slasher. Algo tão poderoso que te permite contar a história que você quiser e ainda ter um super assassino pra movimentar enredo, personagens, cliffhangers e o caralho à quatro.

Dito tudo isso (e bota “tudo isso nisso”, o texto ficou enorme), podemos chamar de fórmula mágica a existência do terror slasher. Não é garantia de sucesso, nem de boas histórias, mas com certeza vai ser a melhor forma de entrar nesse universo maravilhosamente doido que são as histórias de terror. Até o Ursinho Pooh entrou na onda.

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