Os medos sobre o uso de IA nas artes

Essa fita ainda vai causar muita dor de cabeça.

Inteligências artificiais. Quase todos os dias vejo comentários nas redes, principalmente na bolha literária, sobre o uso das IAs nas produções artísticas, sobretudo nas artes visuais. A maioria são criticando o uso, mas também vejo poucos defendendo (e muita gente usando nas obras e sendo cobrado por isso).

Eu também sou contra o uso de IAs em produções artísticas. Mas mais do que ficar defendendo meu ponto, queria falar do ponto de vista de quem trabalha no mercado que financia o desenvolvimento dessa tecnologia, que é a publicidade. E se esse assunto já causa medo em artistas e escritores, nos profissionais de comunicação não é muito diferente.

Então, o texto não vai ser terror, especificamente, mas sobre o quanto esse assunto também pode ser assustador.

Inteligências artificiais fora das artes

A alguns anos, ainda durante a pandemia, trabalhei numa agência que faz parte de um grupo global de publicidade, com mais de 40 mil funcionários no mundo inteiro. Duas vezes por ano, líderes das agências desse grupo se reuniam pra avaliar ideias e contar sobre as novas tendências do mercado, e parte dessas discussões eram trazidas localmente, pra gente pensar ideias e soluções pros clientes. No meeting depois de um desses encontros, o CEO da agência em que trabalhava contou que uma das projeções era de que, até a década de 2030, teríamos anúncios segmentados para cada pessoa.

“Mas isso já não existe?”, você pode se perguntar. Sim, hoje existem ferramentas bem precisas em segmentar públicos e direcionar conteúdos, fazer testes de perfomance, até mensuração de dados em comportamento digital que ajudam no planejamento das campanhas. Mas o que estou falando é sobre você, indivíduo, receber uma comunicação feita exclusivamente para você; com texto, arte montado individualmente pra te impactar.

Como isso seria possível? Inteligências artificiais.

Parte do debate sobre o uso das IAs ainda acontece com base nos mesmos entendimentos de um, dois anos atrás. Tá vendo esse vídeo aqui do Will Smith comendo macarrão?

Isso não é nada perto do que se pode fazer hoje em dia. A Coca-Cola já usou inteligência artificial pra desenvolver um sabor novo de refrigerante. E, recentemente, eles também usaram inteligência artificial pra desenvolver uma nova tipografia pra Coca Zero. Não se discute na publicidade (na verdade, nunca se discutiu) a moralidade das inteligências artificiais, ou a distribuição de direitos autorais. O mercado de comunicação quer dinheiro e dados, as empresas de tecnologia, também.

Agências no mundo inteiro já montam áreas focadas em inteligência artificial. O Google já integrou uma IA às pesquisas, que já conta com ferramentas empresariais; a Adobe já integrou uma IA própria aos produtos dela, que gera até nove resultados dentro da área de trabalho do Photoshop, por exemplo, e funciona em português; os layoffs em big techs ficaram cada vez mais frequentes e as IAs têm dedo nisso. 

E aqui nem tô falando sobre o uso político dessa tecnologia (que já geraria um texto por si, só). Desde os deepfakes, manipulações de vozes, material de propaganda eleitoral pesada (inclusive, esse ano temos eleições) e que também são influenciadas pelas inteligências artificiais.

Eu já tive que usar inteligências artificiais em trabalhos publicitários. Não por questões artísticas ou estéticas, mas por determinação de quem paga as contas da agência — o famoso topdown —, que vem dos clientes. Por mais que muitos artisstas trabalhem com publicidade pra se manter, não se tem tempo dentro de uma agência (e tempo é essencial pra se criar arte de verdade). Só que pras marcas, não é a arte de verdade que importa (ou, que importa sempre) e sim gerar lucro. E nessa estrutura, o proletariado tem peso zero nas discussões. É um grande conflito moral dos novos tempos.

O que eu quero dizer é: não existe mais retorno. As inteligências artificiais generativas contam com algo que nenhum coletivo ou sindicato de artistas conta: muita grana. Se não se pode interromper o avanço, se não existe proposta de regulamentação sobre o uso delas, se cada vez mais elas estão em ferramentas básicas e essenciais pra artistas e se não se tem como competir com o poderio financeiro, como fica a situação da arte?

Artes e IAs

Inteligências artificiais generativas não criam coisas. Elas geram resultados com base num banco de dados, seja em texto, seja visualmente. Não dá pra comparar isso com o processo humano de criação (a busca por referências, estudo, prática, repetição, contexto, etc.). IAs não criam arte, ponto.

A Marvel usou inteligência artificial generativa na abertura de Invasão Secreta. O uso das IAs no audiovisual também foi um dos temas da greve dos roteiristas e atores em 2023.

Nós, individualmente, podemos fazer todas as escolhas que mais se adequam ao que acreditamos. Não uso IAs nos meus livros nem em nenhum outro projeto literário porque não é o que acredito. Assim como não concordo, por exemplo, com livros ilustrados por IAs, ou escritos com auxílio delas, participando de premiações ou sendo publicados por editoras tradicionais.

Mas como a gente vai fazer esse controle no futuro? Se a cada momento novas versões, como a IA da OpenAI que usa os textos do ChatGPT pra criar vídeos, surgem? Como vamos poder determinar, por exemplo, quando um designer utilizou ou não a inteligência artificial da Adobe pra compor uma peça; é roubar no jogo ou só mais uma ferramenta do software? Como vai ser possível afirmar quando um autor usou ou não um ChatGPT da vida pra compor uma história? Pior: como a gente pode afirmar que alguém existe, quando influenciadores feitos em inteligência artificial ganham uma boa grana sequer existindo?

Na publicidade, por exemplo, existe uma porcentagem de uso de imagens de banco em filmes publicitários; a depender da quantidade e da secundagem, por exemplo, um comercial não pode ser veiculado na televisão (o que não acontece na internet, por exemplo). Teremos algo do tipo aplicado às artes? Talvez isso precise passar por aprovação em esferas parlamentares, mas estariam eles interessados em legislar sobre? São dúvidas reais que não são só sobre se IAs sabem ou não fazer dedos, mas que fazem parte do estágio do debate.

Me assusta pensar que, no futuro, todo mundo vai ter que aprender a usar IA pra alguma coisa (ou vamos perder empregos pra quem usa). Me assusta pensar que autores e artistas podem ser prejudicados pelo uso ou não dessas ferramentas por terceiros. Não é um sentimento parecido com fotografias analógicas x fotografias digitais ou se existe direção de fotografia em chromakey. Mas é uma conversa que ainda não estamos preparados para ter.

Se você acha que dá medo ver a cara do Will Smith em IA comendo macarrão é porque não viu ainda um CMO de multinacional cheio de dinheiro pedindo qualquer coisa com inteligência artificial porque ele leu em algum site gringo que essa é a nova onda do imperador. Mas até a gente saber o que fazer com as IAs, vamos fazer arte de verdade que ganhamos bem mais.

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