Do ponto A ao ponto B e o caminho do meio

Processo criativo de uma coletânea de terror

2022 foi um ano interessante. Na vida profissional, tanto como escritor, quanto publicitário. Em ambos os lados, sinto que dei passos importantes, como participações em palestras, workshops e cursos de um lado e o estabelecimento de trabalhos e conquista de prêmios do outro.

Ao mesmo tempo, passei a pensar e repensar conceitos e ideias sobre como chegar naquilo que acredito ser o melhor, ou mais adequado, pro meu entendimento de literatura. O terror, muitas vezes, é colocado em caixas e conceitos bastante angulares e quebrar essas amarras pode levar tempo e causar ruídos.

O meio.

Uma narrativa te leva do ponto A ao ponto B. Sobretudo quando falamos de contos. Por serem narrativas mais curtas, onde a quantidade de arcos dramáticos é reduzida, ser claro e direto no expressar da ideia é uma boa prática contista. Isso não quer dizer, porém, que se tem de ser didático ou extremamente expositivo. Ou, ainda, que não se permitam mistérios, icebergs ou inovações.

Mas quando falamos, de forma quase que euclidiana, sobre transicionar do início para o fim de algo, é importante nos lembrarmos do meio. Esse espaço, que passa despercebido num plano, é onde a história acontece. Aqui entram as situações, personagens e acontecimentos que levarão o autor do ponto A ao ponto B. Mas é o meio que será o fio condutor. Dito isso, tanto uma história, quanto um humano, são produtos do meio.

No terror, os pontos A e B podem ser entendidos como os gatilhos e ferramentas desenvolvidos pelo próprio gênero. Seja no suspense, com a construção da ideia de que algo ruim irá acontecer, a quebra dessa expectativa com uma coisa diferente e, depois, a jumpscare pegando o leitor desprevenido ou até mesmo com a apresentação de uma criatura, entidade, espírito ou forma grotesca que vai aterrorizar o/os protagonista/s.

Esses elementos clássicos se misturam com as inovações dentro do gênero, como, por exemplo, Um Lugar Silencioso (2018), usa a importância dos momentos de silêncio e sound design nos filmes de terror de um jeito inteligente, respeitando a estética. Ou, por exemplo, em Alien: O Oitavo Passageiro (1979), em que a claustrofobia toma conta do espectador ao longo do filme de forma magistral.

Na literatura não posso deixar de citar O Silêncio dos Inocentes (1988), que mescla o policial ao terror de forma magistral, sobretudo quando estamos sob o ponto de vista de Hannibal. O uso do narrador limitado faz toda a diferença na construção da atmosfera, pegando o leitor desprevenido em diversos momentos.

Acontece que o próprio gênero muda com o passar dos anos. A forma de se chegar no que é ou não assustador é diferente. Entre os anos 80 e 2000 aconteceram tantas, ou até mais, transformações que em séculos. E o pós-terror entra como uma noma forma de se trabalhar o medo.

Em outras newsletters, já falei sobre o quanto não gosto desse termo, por colocar o poder de criticismo do terror clássico, que sempre existiu, como algo inexistente. E, ainda, transformar a estética como o grande objeto de apreciação dessas narrativas, em detrimento da história que está sendo contada.

Glauber Rocha, nos anos 60, enfrentava críticas sobre o filme Terra em Transe (1967) — um dos marcos do movimento cinema novo e vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1967. Por não se tratar de um filme de terror, acho que não vale tanto me dobrar, aqui, sobre o teor do filme, mas ele pode ser encontrado facilmente no YouTube. Ainda sobre a película, ela foi em muito, acusada de ser mal montada e confusa. Sobre isso, Glauber disse, em uma entrevista:

"Existem intelectuais, artistas, escritores, que justificam a péssima qualidade de uma obra artística em nome de uma intenção política progressista. Isto é traição que não admito, porque acredito que o fenômeno político, o fenômeno social, só ganham sua importância artística quando expressos em uma obra de arte que esteja colocada numa perspectiva estética. Autores que combatem a alienação do ponto de vista sociopolítico realizam filmes que aparecem profundamente alienados, e que estão, no fundo, ligados aos preconceitos culturais colonialistas do cinema americano e europeu. Quando fiz Terra em Transe, quis que fosse uma ruptura — a mais radical possível —, com esse tipo de influências, com a aspiração de que fosse uma bomba. Lançada com toda a intenção. [...] Interessa-me criar polêmica, participar da atividade cultural e política. [...] Mesmo que saiba que tem defeitos, porque os defeitos nunca poderiam ter deixado de existir".

Mas... pensando por esse lado, também podemos ver as críticas sociopolíticas aliadas ao senso estético nas obras do pós-terror. Em O Babadock (2014) temos o debate sobre a violência contra crianças e o abandono parental; já em A Bruxa (2015), sobre a puberdade feminina e criminalização do ser mulher; até mesmo em Não, Não Olhe! (2022), o qual fiz uma newsletter dando minhas impressões, temos a problemática da espetacularização da mídia e suas consequências.

Trazendo para a literatura, precisamos entender que a estética precisa estar alinhada ao que a história se propõe, sua subtrama, pontos de virada e desenvolvimento dos personagens. Essa exploração de uma estética diferenciada, porém, não aparece tanto nas obras literárias do gênero. Talvez, por uma simples questão de mídia, uma vez que o audiovisual fornece ferramentas mais sofisticadas e apropriadas pra esse tipo de construção — ainda que a própria ficção literária já explore as potencialidades da língua, vide Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Ou, talvez, por não termos achado ainda a proposta estética ideal para tal.

Esse entendimento me fez pensar muito sobre o que eu quero transmitir nas histórias que escrevo e como fazer esse tipo de traquitana literária.

Psicodelia como motor

Quando comecei a trabalhar na coletânea de contos que, provavelmente, irei lançar este ano, queria algo que pudesse dar substância ao senso de perda de equilíbrio e fuga da realidade que as obras mais psicodélicas me traziam. Fosse em animações, como Paranoid Agent, nos mangás de Junji Ito ou até mesmo nas obras do artista plástico Takashi Murakami, esse sentimento é bem presente.

Comecei nessa caminhada com Abrakadabra, ainda em 2019, como um exercício. Nesse primeiro momento, exercitei a mescla entre tecnologia e psicodelia. Alcancei um resultado que considerei interessante e quis explorar mais desse lado. Meu segundo trabalho nessa levada foi o conto Schizophrenia, publicado na coletânea Sertãopunk: Histórias de um Nordeste do Amanhã. Através das avaliações, vi que muitas pessoas não se adaptaram tanto a proposta quanto em Abrakadabra. Talvez por ter sido um pouco mais intenso nas transições e quebras de percepções. Então, na terceira tentativa, La Mazka, quis usar o que funcionou de uma experiência (a mescla entre tecnologia, terror e psicodelia) e amenizar o que não funcionou (transições muito frequentes e perda rápida de percepção do leitor do que acontece na obra). Só que, para isso, usei, em grande parte, um protagonista infanto-juvenil, o que me podou, de certo modo, de usar certos tipos de gatilhos do próprio gênero de terror, como o uso do gore, na narrativa. Então, apliquei mais temática sociopolítica na composição da atmosfera.

Quando tive a ideia de criar uma coletânea, pensei automaticamente em aproveitar esses três trabalhos e uní-los num só universo literário (todos já contavam com elementos que os conectavam, como La Mazka sendo uma prequel que Abrakadabra e algumas linhas em Schizophrenia que ligavam o conto aos anteriores). Aliado a isso, tive o aprendizado dos feedbacks dos leitores, dos meus próprios processos pessoais, busquei novas experiências e referências e resolvi aproveitar todos esses pontos na construção de um pano de fundo único. Sabia que precisaria de mais contos para estabelecer esse cenário e, dentro do que achei justo, decidi que seriam três novas histórias: Hypnofrenose, parte 1; Todos os sonhos dos homens; Soro. Atualmente, todas encontram-se completas e em processo de edição.

Junto ao pano de fundo, entrou o reforço no debate sociopolítico, com alta presença de tecnologia e debates sobre o uso da ciência para fins políticos. Com isso vieram novos personagens, tramas, subtramas, encaixes e uma série de organizações pra alinhar todas as histórias. Mas ainda falta um ponto: o nome. Em debate com G. G. Diniz, minha amiga e editora, chegamos num entendimento de que a primeira proposta não funcionava tanto pro que estava querendo. Então, estou trabalhando nesse ponto.

Sono.

De uma forma ou de outra, todas as histórias são ligadas pelo sono. Eu sou uma pessoa extremamente ansiosa e com sérios problemas pra dormir. Insônia, principalmente. Essa dificuldade me fez falar desse assunto algumas vezes nas obras, como em Schizophrenia, em que o protagonista, Rafael, estava a cerca de um mês sem dormir direito — eu mesmo já passei por esse tipo de situação. Falar sobre o sono na terapia já ocupou uma série de sessões.

Em meus processos, percebi como o sono também é um meio. Do ponto A (a realidade) ao ponto B (o sonho), temos o sono no meio do caminho. E, quando temos a qualidade do sono prejudicada, a linha entre o real e imaginário se torna confusa, complexa e, muitas vezes, assustadora e dolorosa. Percebi, nas perturbações do sono, a possibilidade de explorar a psicodelia na minha obra de um jeito mais inteligente.

O meio do meio.

Aliada a essa analogia do sono como o meio entre a realidade e o sonhar, e essas percepções do espaço entre pontos narrativos, temos a questão do humano como produto do meio. Acho que Rousseau acertou nesse ponto, ainda que interseccionalidade não fosse seu campo de estudo. Nesse meio, temos todos os pontos que compõem o que é, ou não, ser humano.

Sua classe social é um meio. A cor da pele, raça e etnia, sexualidade, gênero ou expressão de gênero, espectro político, regionalidade, se possui ou não deficiência psicomotora. Todos esses pontos interferem na transição do eu entre o ser e o estar. Ou, do ponto A ou ponto B.

Por isso, quando penso em criticismo sociopolítico, não consigo desassociar os personagens de figuras marginalizadas. Todos os protagonistas dos contos da coletânea são pessoas não-brancas; negros, indígenas, mulheres e pessoas LGBTQIAP+. Todos inseridos não somente num mundo que ainda é perigoso para essas elas por serem quem são, onde enfrentam não só os problemas da vida pessoal, mas também as dificuldades de se conviver com governos corruptos e assassinos.

Caminho

Nesse primeiro texto, falei bastante de como cheguei numa ideia. Acho que cada um de nós, produtores de arte em algum nível, chegamos em caminhos e resultados diferentes. Essas experiências múltiplas são parte fundamental do processo criativo. Pra essa coletânea (ainda não-nomeada, mas assim que for, vocês saberão), é um próximo passo pro estabelecimento, ao menos pra mim, do que Glauber Rocha disse lá atrás: unir arte, estética e crítica, sem perder a qualidade.

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