Vampiros, zumbis e racismo

Metáforas raciais em narrativas de terror

Um cara branco acorda do coma em um hospital. Tudo foi destruído. Ele percebe que um vírus transformou as pessoas em coisas violentas e sanguinárias. Agora ele precisa se unir com outras pessoas pra sobreviver enquanto mata ex-humanos (e alguns humanos) no caminho.

Parece The Walking Dead. Também parece Extermínio. E se puxar na memória, vai parecer mais alguma outra coisa que você já viu ou leu. Essa não é uma estrutura pouco conhecida de histórias de zumbi. As formas dessas criaturas (e motivos pra existirem) variam de narrativa para narrativa, mas existe um padrão: seres morto-vivos, com instintos primitivos cuja a única vontade é comer e vagar indefinidamente, sem consciência de quem são ou de quem foram, com corpos apodrecidos e por aí vai.

O que é curioso é a origem dos zumbis.

O termo é uma corruptela do kongo nzamba, que significa fantasma. Na tradição vodu, a figura do zumbi é uma forma de pós-vida são colocadas num estado de semi-morte, obrigadas a servir a um senhor (e que podem sair desse estado caso se aproximem da antiga cova). Como vocês podem imaginar, o vodu é uma religião de matriz africana, do povo jeje, o mesmo que também compõe a etnia dominante do Tambor de Mina, bastante popular no Maranhão.

Os zumbis haitianos são uma representação do paradoxo que é o Haiti. Precisamos lembrar que o país foi o único em que negros escravizados conseguiram a própria independência, vencendo batalhas importantes contra a França e colocando um ponto de exclamação na cabeça de toda a ocidentalidade escravista que percebeu que os negros poderiam (e iriam, se tivessem a oportunidade) se rebelar. Mesmo assim, esse povo sofreu com embargos, sanções, punições e dívidas, sendo abandonados por todo o mundo dito civilizado e colocados numa condição de eternos trabalhadores errantes. Zumbis.

O livro Adriana em todos os meus sonhos, do autor haitiano René Depestre, temos uma protagonista que morre no dia do casamento e é reanimada em forma de zumbi. O livro traz uma visão bastante diversa, que até tenho dificuldades em posicionar como terror, mas que orbita no campo do realismo mágico, sobre o conceito de zumbi. Depestre traz a analogia do zumbi enquanto a representação do escravizado e a estende a toda a população do Haiti, justamente pelo paradoxo que é o Haiti.

Mon pays ne serait-il pas un zombie collectif?

Adriana em todos os meus sonhos, pág. 125, capítulo “Prolegômenos a um ensaio sem amanhã”.

O zumbi branco não é nada disso. É irracional, errante, podre, animalesco e contagioso. O ponto do contágio, aliás, é contemporâneo às ideologias segregacionistas estadunidenses e corrobora com os medos da sociedade branca dos Estados Unidos. Até quando a origem dos zumbis não é mística (seja pela ciência, alienígena, fungos e por aí vai), o contágio zumbifica o outro. O contato expõe um ser puro e racional a um mal que entra no sangue, na carne, na alma, e o aproxima do animalesco.

A ideologia racista trabalha há séculos na aproximação do negro de qualquer coisa que não seja humano. Seja nos comparativos com primatas, na construção de narrativa que coloca pretos como pessoas sem almas, na ideia de que os negros descendem de Cam e por isso são marcados pelo pecado eternamente ou mesmo nos estudos de frenologia que comparava crânios de pretos para reforçar o racismo científico da branquitude ocidental.

Neste sentido, ao exportarmos uma prática religiosa negra para um contexto como o dos zumbis, é, sim, possível fazer uma leitura racializada da questão e perceber que, no fundo, a ideia do zumbi do terror é uma distorção da ideia da figura preta.

P.S.: Apenas para deixar claro: não estou dizendo que todas as histórias de zumbi são racistas ou que você, que produz ou já produziu histórias sobre zumbis, é racista. Apenas apontando uma leitura racializada da figura zumbi.

Assim como acontece com os zumbis enquanto criaturas místicas presentes na cultura pop, também temos os vampiros. Mas, com uma série de diferenças. Os vampiros construídos a partir da ideia de Drácula têm uma postura sedutora, inteligente, mas que são relegados à solidão; o contato com o sol, o dia, o momento em que humanos trabalham, interagem, viajam, é proibido. À eles lhe resta a noite, a penumbra, interações sombrias e potencialmente perigosas. Mas dois pontos são bastante simbólicos quando falamos dos vampiros: o contágio e a falta de reflexo.

A valorização da autoimagem é presente nas culturas humanas. Seja com as esculturas humanas ou fotos no Instagram, o autorreconhecimento (e o reconhecimento dos outros sobre suas feições) se faz presente historicamente. Não à toa o cristianismo traz o homem à imagem e semelhança de Deus. Se ver e ser visto pelo outro é se deparar com o Altíssimo. A partir do momento que você não pode ser visto, nem por você mesmo, seu espectro é oposto ao divino.

Mas falando sobre o contágio dos vampiros, pensemos na figura do Drácula. Existia um medo em particular na obra de Bram Stoker com relação a mulheres virgens, jovens, que seriam o alvo dessa criatura — que não era nativo da Inglaterra. A Transilvânia fica na Romênia, que é um país de povo com origem latina. Os romenos, assim como os ciganos indianos, são conhecidos por serem minorias étnicas em grande parte do mundo — inclusive no Brasil, onde os romani compõem a ideia de cigano brasileiro.

Para a Inglaterra do século XIX, o contato dos ingleses com essa cultura mancharia a linhagem pura européia (pensamento reproduzido por Margareth Thatcher nos anos noventa do século XX, dessa vez com a migração islâmica para a Inglaterra). Resta a um grupo de homens brancos se aventurar para derrotar o mal que o Drácula representa.

A leitura racial dos vampiros também pode ser feita a partir da ótica afrocentrada, o que Muniz Sodré fez em 1995 para um especial da Folha que você pode ler aqui.

O que quero mostrar aqui não é como esse tipo de narrativa é potencialmente racista ou xenofóbica, mas como a construção do medo também passa pela ideia de sociedade e visão dominante de quem produz as narrativas. Seja no cinema ou na literatura, a ideia do medo passa pelo medo de alguém sobre algo (que, em muitas vezes, é outra pessoa).

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